domingo, 9 de setembro de 2012

Pondo os pingos nos is



Domingo, 9 de setembro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo

A Bienal de São Paulo deste ano vai ter Arthur Bispo do Rosário como sua estrela maior, e ele merece. É fundamental ver suas obras e se comover com a beleza da obra desse singular personagem, marinheiro em sua juventude.

          Um dia, a partir de uma alucinação, Bispo se acreditou enviado de Deus, razão que o levou a ser internado na Colônia Juliano Moreira, um depósito de loucos, lugar onde as pessoas entravam e só saiam depois de mortos. Lá ficou durante 50 anos, sendo que parte deles encerrado dentro de uma pequena cela, de onde se recusava a sair.

          Foi nessa cela que Bispo começou a trabalhar com tudo que encontrava: tirava fios de camisas e lençóes, um por um, para costurar, usava palha de vassouras de piaçava, botões, colheres, canecas, pentes, tampas de garrafa, objetos hospitalares e toda a sucata disponível e com isso produzia objetos insólitos; em suas mãos tudo virava arte, seus estandartes eram comoventes, mas nada foi mais grandioso que o Manto da Apresentação. Nesse manto, que bordou durante 30 anos, ele catalogou o mundo, bordando nomes de pessoas, artistas, cantores, países, acontecimentos, faixas de misses, retratando tudo que ele lembrava ou ouvia falar que existia; tudo que ele fazia era perturbador. Esse manto foi feito para ser usado no  momento em que o mundo se encontraria com o Todo Poderoso, e que seria seu grande encontro com Deus.

          Chamado de “o senhor do labirinto”, Bispo tinha seu universo particular, alucinado e delirante, mas sempre com algo de sagrado. Suas obras, que foram expostas na Bienal de Veneza, devem ser vistas com muita atenção, lembrando das circunstâncias e condições em que foram criadas. Há muitos anos vi uma exposição dele no Rio, numa pequena sala num 15º andar, se não me engano da Caixa Econômica, e que não fez nenhum sucesso. Ele ainda não era famoso, mas eu tinha minhas razões para ir vê-la, e vou contar.

          Num domingo de 1980 eu estava em casa, quando me telefonou um jovem repórter da TV Globo, dizendo, em tom urgente e excitado, que eu não podia deixar de ver o Fantastico naquela noite. Ele havia ido fazer uma matéria para expor as terríveis condições dos internos da Colônia Juliano Moreira, e como era muito curioso, como todo bom reporter, foi fuçando tudo, até que viu uma cela escura; entrou e encontrou um estranho homem, sozinho, cercado de panos bordados e objetos sem nenhum significado aparente. Ele entrou e conseguiu dialogar com o homem (que você já adivinhou ser Bispo do Rosário). Rolou uma simpatia, e Bispo não só mostrou tudo que vinha fazendo há 7 anos, sem sair da cela nem um só dia, como também contou de onde tirava o material, e como fazia suas obras, o que deu uma matéria inacreditável no Fantástico; foi depois desse programa que Bispo do Rosário surgiu para omundo.

          A partir daí a classe artística o descobriu, suas obras foram expostas em museus, galerias, e livros escritossobre sua pessoa. Livros que ele provavelmente não entenderia, se lesse.

          Um ser tão extraordinário como Bispo do Rosário seria descoberto mais dia menos dia, imagino. Ou não; e se algum servente do hospital resolvesse fazer uma faxina em sua cela antes da matéria aparecesse na TV, e jogasse tudo que encontrasse num lixão?

          Nunca vamos ter resposta para isso, e não me lembro de jamais ter ouvido alguém citar o nome desse reporter, o primeiro a vislumbrar a importância de Arthur Bispo do Rosário, mas eu sei quem ele foi.

          Seu nome era Samuel Wainer Filho, e ele era meu filho.


   

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