domingo, 23 de dezembro de 2012

Estar só



Domingo, 23 de dezembro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


Do que mais se precisa na vida para ser feliz? De calor humano, dizem; por calor humanoentenda-se, para começar, de alguém com quem se compartilha a vida, uma família bem estruturada, e amigos, muitos amigos. Trocando em miúdos: para não correr o risco de ficar só _ nunca.

            Mas quanto mais gente em volta, mais problemas. Houve um tempo em que se dizia que os casamentos seriam felizes para sempre; mais tarde, que durariam 7 anos. Mas o mundo mudou, a ciência moderna constata que o amor dura no máximo 2 anos, e como ninguém suporta ser infeliz por mais de um fim de semana, o divórcio está em alta.

            E a família, como vai? Ninguém conta, mas raras são as que se dão bem, e quantomaiores elas são, mais brigas. Por ciúmes, inveja, e sobretudo por dinheiro. Aliás, dinheiro é o grande responsável por quase tudo; ouso dizer (mas sem muita certeza) que existem mais brigas por dinheiro do que por amor.

            Quando se vê um um homem ou uma mulher (sobretudo) com mais de 50, vivendo só, tem sempre uma amiga que diz _ com a melhor das intenções _ ah, você precisa encontraralguém”. Às vezes a pessoa está bem, melhor do que jamais esteve, mas como existe essa certeza de que os seres humanos não podem viver sós, ninguém acredita – ou não quer acreditar ou não entende. Todos devem estar namorando, casando, ouqualquer outro nome que se queira dar, e se estiverem com um parceiro, mesmo tristes, infelizes, sem assunto, à beira de cometer suicídio ou um assassinato, qual o problema? O importante é estar acompanhada, o que aliás nos tira a felicidade de sermos as donas absolutas do controle remoto, e poder passar o fim de semana com a geladeira vazia e sem arrumar a cama.

            Aliás, o que as pessoas fazem para que isso não aconteça? Elas se cercam de pessoas com quem não têm quase nada em comum, dos quais frequentemente não gostam e atéfalam mal. Numa mesa de restaurante com 6, 8 pessoas, ninguém ouve o que o outro está dizendo, ninguém consegue trocar uma idéia com quem está a seu lado; mas essas são as pessoas que falam mais alto, que mais dão gargalhadas, quemais parecem estar felizes. Quem está só parece _ parece _ ser a mais infeliz das criaturas, sem ter um amigo para jantar, e em datas tipo Natal ou Ano Novo dão até vontade de chorar, de pena.

            Mas é curioso como nos relacionamos com nossos amigos _ com a maioria deles, digamos. Estamos sempre tentando contar uma boa novidade, ou sendo inteligente, ou falando coisas muito interessantes, para que nos tornemos muito interessantes e assim conservá-los. É bom ter um amigo animado, que entra em nossa casa falando alto, perguntando o que vamos beber, e fazendo planos fantásticos para o próximo fim de semana

            Mais curioso ainda é que não há amigo melhor neste mundo do que aquele em cuja companhia você se sente tão bem, mas tão bem, que pode até ficar calado pois parece que está só, vai entender.

            E aproveitando _ e sendo bem incoerente, como é preciso ser às vezes _, um Feliz Natal para todos.  

domingo, 16 de dezembro de 2012

Mais um




Domingo, 16 de dezembro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo



Já que estamos em pleno clima de Natal, como enfrentar os próximos dias que nos esperam? Eu tomei minhas resoluções, e comecei a seguí-las há uma semana.

           Em primeiro lugar, sair de casa só por justíssima causa. Supermercado só aos domingos muito cedo, que é quando estão vazios, comprando o mínimo necessário para não morrer de fome. Pedir ao médico _ se ele não tiver viajado e seu consultório fique a não mais que um quarteirão de sua casa _ várias receitas de vários tranquilizantes e também de um poderoso sonífero para uma eventualidade mais grave (noite de 24). E passe direto na farmácia, para não ter que sair de novo e poder voltar para casa correndo.

          Se você faz parte da turma que se estressa no fim do ano _ e quem não faz? _ peça a seuporteiro para não lhe entregar um só pacote com ares de presente de Natal. Que deixe tudo para depois de 6 de janeiro, quando todos os festejos estarão terminados. Só então você vai telefonar para quem lembrou de você e agradecer, dizendo que foi passar as festas no Equador, e que adorou o presente. A única maneira de se liberar das lembrancinhas de Natal é jamais retribuí-las; um dia as pessoas compreendem. Mas o grande perigo é o telefone.

           Se você faz parte dos 99,9 % que usam celular é mais fácil, pois sabe quem está ligando e pode simplesmente não atender. Mas se pertence à turma dos que, como eu, só tem telefone fixo _ e com fio _, aí é preciso uma estratégia mais cuidadosa.

           Para aqueles 2 ou 3 amigos com que você se entende, é preciso combinar. Eles devem ligar, deixar o telefone tocar uma vez, e ligar de novo _ aí você atende. As pessoas que você mais adora na família (que não são todas) têm o direito de saber desse código, e assim você se liberta de ouvir os eternamente iguais Feliz Natal,coisa que eu nunca entendi muito bem. A não ser que seja uma pessoa verdadeiramente religiosa, que festeja com fervor o nascimento de Jesus _ e eu não conheço ninguém assim _, não dá para entender porque as pessoas se desejam todas um Feliz Natal. Eu entenderia melhor se todos os dias fosse cumprimentada pelo jornaleiro, a vendedora da loja, e todos meus amigos, com um Feliz Hoje; não seria mais legal? E para se defender da programação natalina, na TV, só o Animal Planet e o Canal Rural.

           Como falta só mais uma semana, procure não se estressar: o Natal passa.

P.S. – Se nem os ministros do Supremo têm a mesma opinião sobre quem deve cassar os deputados condenados, se o STF ou a Câmara dos Deputados, nós, simples mortais, muito menos. Mas eu torço para que essa situação seja decidida ficando essa incumbência para o Supremo, porque não tenho a menor confiança em nossos nobres deputados _ nem tenho razão de ter. Não vamos nos esquecer que foram eles, em 2005, que votaram em Severino Cavalcanti com o claro intuito de bagunçar mais ainda a situação política na época, e acho perfeitamente possível que eles, escudados pelo voto secreto, sejam capazes de votar pela não cassação dos deputados condenados, o que seria uma total vergonha para o país, e que pode perfeitamente acontecer.

          E não entendo como o ministro Celso de Mello se esqueceu de se vacinar contra a gripe.


quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Quem ama mata _ ou morre



Domingo, 16 de dezembro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


O amor é maravilhoso, não é? É, responde o mundo em coro. Mas porque será que as pessoas mudam tanto quando apaixonadas? Os mais boêmios, que passavam as madrugadas contando histórias idiotas mas muito divertidas, que tinham sempre uma opinião diferente e original sobre os assuntos do dia, se tornam austeros _ e a bem da verdade, bem menos interessantes.
O affair do diretor do FMI, por exemplo; qualquer homem, em companhia de seus íntimos, dirá que se a camareira fossegostosa faria a mesma coisa. Única ressalva: negaria até o fim, mesmo diante da Suprema Corte. Mas se estiver ao lado da namorada vai dizer que esse tipo de procedimento é indigno, e que um homem que se respeita não pode, jamais, fazer nada de parecido. Quanto a elas _ bem, se eles são assim, porque elas seriam diferentes?
Num almoço só de mulheres, depois da segunda caipirinha, algumas serão suficientemente francas para dizer que adoram homens atrevidos e ousados. Mas ponha essas mesmas mulheres ao lado dos maridos e pasme diante do que elas vão dizer, dele e da pobre camareira.
Um homem ao lado da mulher que ama é outra pessoa, alguém que nem mesmo sua própria mãe é capaz de reconhecer; ele é capaz de dizer que não acha a menor graça em mulher alguma, que quem ama é fiel, e que para ele só existem duas coisas que realmente importam: ela _ em primeiro lugar _ e o time pelo qual torce. Se você encontrar esse mesmo homem almoçando com três amigos no Centro da cidade, traçando uma linguicinha com um chope, vai descobrir que se trata de outra pessoa, só pelo som das gargalhadas. E se passar uma bela morena com as pernas de fora, será um belo festival de baixarias.
Se você tiver uma única e grande amiga e ela se apaixonar, fique sabendo que ficou sozinha no mundo. Fazer uma refeição com um casal apaixonado está acima das forças de qualquer ser humano não apaixonado, pois o mundo deles é diferente, e nele não há lugar para pessoas normais.
Quem ama se transforma em outra pessoa com outros gostos e outras opiniões, capaz de roubar a aliança da própria mãe para passar um fim de semana no Caribe com o ser amado, isto é: torna-se uma pessoa indigna de nossa confiança.
Aquela mulher que quando entrava na discoteca começava a mexer o corpo, hoje em dia fica paralisada, surda e muda, talvez pelas lembranças que a música traz _ ah, como são coerentes, as mulheres. Só que ele se apaixonou por ela exatamente quando ela mexia não só o corpo como o gelo do copo de uisque com o dedo, e agora, quando olha para aquela mulher austera não entende por que a vida era tão melhor.
Você já foi a um show de strip-tease com seu amado? Bem, quando o romance começou ele brincava e atiçava seus ciúmes comelogios às gostosas no palco; agora, quando vê uma mulher pelada numa revista, olha sério, sem uma só expressão no rosto, como se estivesse vendo um quadro num museu. Ele virou um marido, tudo que você sempre quis, e por nada no mundo você faria um strip particular só para ele, como já fez; certas coisas não são para serem feitas com marido.
Tente ir com ele a uma praia da Europa, daquelas em que as mulheres tiram muito naturalmente o sutiã para tomar sol. Nervoso ele vai ficar _ ah, isso vai. Faça então uma experiência e diga que vai tirar o seu: um homem das cavernas vai surgir de dentro daquele que passava a mão nas suas pernas no carro, no meio do trânsito, com o ar mais sério do mundo.
Onde foi parar esse homem? Onde foi parar aquela mulher que vivia feliz e risonha, que não queria nada da vida a não ser ficar junto com ele, agarrada, apaixonada?
Quem ama não mata? Mata, sim; ou mata o outro, ou mata a si próprio _ e o fim dessa história a gente conhece.



sábado, 1 de dezembro de 2012

Coisas em geral


Domingo, 2 de dezembro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


Agora que os festejos já acabaram, é a hora do perigo, então vou me dar ao direito, já pedindo desculpas, de dar umas dicas à Suprema Corte. Mas antes vou estranhar um pouco a lista dos artistas convidados para a posse, todos negros: Lázaro Ramos, Milton Gonçalves, Martinho da Vila; brancas, só Regina Casé e Lucélia Santos (mas essa tinha direito, porque foi a Escrava Isaura); não será isto uma forma de preconceito? Vamosfalar a verdade: neste momento, quem é branquelo não está com nada.

          Convites de todos os tipos vão surgir, e eu diria que não aceitassem nenhum. Quase nenhum.

          Almoçar e jantar, só com amigos, mas amigos de infância ou dos tempos pré-mensalão. E se num restaurante um fã chegar com o celular, devem deixar que batam a foto, sim, para não ficarem antipáticos, mas a uma certa distância; e sérios, para não parecerem íntimos. Pode até pintar um convite para o ministro Fux gravar um CD.

          A imprensa vai querer saber das intimidades, qual o prato preferido, a pasta de dentes que usa, se praticamalgum esporte, por que time torcem, se vêem novela, e peço a Deus que dê muito juízo aos ministros para não responderem a pergunta alguma.

        Revistas de decoração vão tentar fotografar a casa de cada um deles, e suas mulheres serão seguidas nos cabelereiros para que o mundo saiba se elas pintam ou não o cabelo, e a cor do esmalte que usam. E se algum deles for solteiro, manda a prudência que elesguardem uma castidade digna de um jesuita, porque assédio vai haver, ah, isso vai.

         Tudo tem um preço, e o deles vai ser ficarem o mais longe possível das badalações; mas eles são seres humanos, ealgumas serão tentadoras, mas devem resistir, porque o mundo é assim: um dia se é herói, e qualquer descuido faz com que o ídolo da véspera seja a Geni de amanhã.

         O grande perigo vai ser o carnaval; convites para os melhores camarotes vão pintar, se bobear até mesmo para sair numa escola de samba, o que seria a catástrofe final. Mas um ministro também é gente, e se o prefeito sai na bateria do Salgueiro, por que eles não poderiam? Porque não podem. E as ministras que se cuidem, pois não é impossível, com todo o respeito, que sejam convidadas até para posar para alguma revista de moda _ ou pior.

          Quando o time estiver completo, será mais conhecido do que a Seleção, e devem continuar no pedestal em que foramcolocados pelo povo brasileiro, pois fizeram pelo país o que ele mais precisava: acreditar na justiça brasileira, que andava com a reputação mais pra lá do que pra cá.

          PS 1 – Quem vai controlar se os réus condenados a penas alternativas vai cumprí-las? Com uma boa conversa se pula um fim de semana, se chove muito não há como chegar à penitenciária para dormir, se ficarem doentes atestados médicos é que não vão faltar, e os condenados são espertos: como se diz por aí, é gente que tira as meias sem precisar tirar os sapatos.

          PS 2 - Escrevo há 10 anos na Folha; são mais de 500 colunas, e acho que nesse longo tempo já deu _ ou deveria ter dado _ para saber quem eu sou. Reli o que escrevi na minha última crônica, refleti sobre o que queria verdadeiramente dizer, e cheguei ao seguinte: nós, seres humanos, somos únicos, ricos ou pobres, gênios ou pessoas comuns, e essa é a grande riqueza da vida: não existem duas pessoas iguais, e ninguém quer ser igual ao outro. Se eu comprasse o mais lindo vestido para uma festa e lá encontrasse Madonna com um igual talvez voltasse em casa para trocar o meu. Se comprasse um iate com 38 cabines, com uma tripulação vestida por Jean Paul Gaulthier, e cruzasse comoutro igual, pertencente a Donald Trump, meu brinquedinho perderia a graça.Porque faz parte querer ser original e único, por isso os artistas, os costureiros, os arquitetos, os decoradores, os escritores, os médicos, os cientistas, todos trabalham para conseguir que suas obras sejam as melhores e, consequentemente, únicas. Existem dois tipos de pessoa: os que vivem para seguir o que está na moda em matéria de viagens, estilo, restaurantes, hotéis, etc., enquanto outros preferem viver na contra mão. Eu pertenço ao segundo grupo: não gosto de multidões, não vou a shows, não vou a festas, não vou arestaurantes da moda, e não viajo na alta estação, prefiro ficar em casa lendo um livro; falei sobre o porteiro como poderia ter falado sobre qualquer pessoa que faz parte dessa multidão que passa a vida indo atrás do que ouviu dizer que está “in, o que para mim é apenas impossível. Lamento, foi um exemplo infeliz.

domingo, 25 de novembro de 2012

Ser especial



Domingo, 25 de novembro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


Afinal, qual a graça de ter muito dinheiro? Quanto mais coisas se tem mais se quer ter, e os desejos e anseios vão mudando _ e aumentando _ a cada dia, só que a coisa não é assim tão simples. Bom mesmo é possuir coisas exclusivas, a que só nós temos acesso; se todo mundo fosse rico, a vida seria um tédio.

Um homem que começa do nada, por exemplo: no início de sua vida, ter um apartamento já era uma ambição quase impossível de alcançar; mas agora, cheio de sucesso, se você falar que está pensando em comprar um com menos de 800 metros quadrados, piscina, sauna e churrasqueira, ele vai olhar para você com o maior desprezo _ isso se olhar.

Vai longe o tempo do primeiro fusquinha comprado com o maior sacrifÌcio; agora, se não for um importado, com televisão, bar e computador, não interessa _ e só tem graça se for o único a ter o brinquedinho. Somos todos verdadeiras crianças, e só queremos ser únicos, especiais e raros; simples, não?  

Queremos todas as brincadeirinhas eletrônicas, que acabaram de ser lançadas, mas qual a graça, se até o vizinho tiver as mesmas? O problema é: como se diferenciar do resto da humanidade, se todos têm acesso a absolutamente tudo, pagando módicas prestações mensais?

As viagens, por exemplo: já se foi o tempo em que ir a Paris era só para alguns; hoje, ninguém quer ouvir o relato da subida do Nilo, do passeio de balão pelo deserto ou ver as fotos da viagem _ e se for o vídeo, pior ainda _ de quem foi às muralhas da China. Ir a Nova Iorque ver os musicais da Broadway já teve sua graça, mas por 50 reais mensais o porteiro do prédio também pode ir, então,qual a graça? Enfrentar 12 horas de avião para chegar a Paris, entrar nas perfumarias que dão 40 por cento de desconto, com vendedoras falando português e onde você só encontra brasileiros _ não é melhor ficar por aqui mesmo?

Viajar ficou banal, e a pergunta é: o que se pode fazer de diferente, original, para deslumbrar os amigos e mostrar que é um ser raro, com imaginação e criatividade, diferente do resto da humanidade?

Até outro dia causava um certofrisson ter um jatinho para viagens mais longas, e um helicóptero, para chegar a Petrópolis ou Angra sem passar pelo desconforto dos congestionamentos. Mas hoje esses pequenos objetos de desejo ficaram tão banais que só podem deslumbrar uma menina modesta que ainda não passou dos 18. A não ser, talvez, que o interior do jatinho seja feito de couro de cobra _ talvez.

É claro que ficar rico deve ser muito bom, mas algumas coisas eles perdem quando chegam lá. Maracanã nunca mais, carnaval também não, e ver os fogos do dia 31 na Praia de Copacabana, nem pensar. Se todos têm acesso a esses prazeres, eles passam a não ter mais a menor graça.

Seguindo esse raciocínio, subir o Champs ElysÈes numa linda tarde de primavera, junto a milhares de turistas tendo as mesmas visões de beleza, é de uma banalidade insuportável. Não importa estar no lugar mais bonito do mundo; o que interessa é saber que só poucos,como você, podem desfrutar do mesmo encantamento.

Quando se chega a esse ponto, a vida fica difícil. Ir para o Caribe não dá, porque as praias estão infestadas de turistas _ assim como Nova Iorque, Londres e Paris; e como no Nordeste só tem alemães e japoneses, chega-se à conclusão de que o mundo está ficando pequeno.

Para os muito exigentes, passa a existir uma única solução: se trancar em casa com um livro, uma enorme caixa de chocolates _ sem medo de engordar _, o ar-condicionado ligado, a televisão desligada, e sozinha.

E quer saber? Se o livro for mesmo bom, não tem nada melhor na vida.

Quase nada, digamos.



domingo, 18 de novembro de 2012

Vergonha




Domingo, 18 de novembro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


          A semana foi pesada, com muitas chuvas e trovoadas.
          Por mais que se achasse que os envolvidos no mensalão mereciam ser condenados, pensar que pessoas que foram tão importantes na vida brasileira, vão para a prisão _ aquela prisão à qual se referiu o ministro da Justiça e que conhecemos bem através de fotos _ não deixa de mexer com quem tem um mínimo de compaixão.
          Algumas coisas me fazem pensar. Será que os muito poderosos, quando ocupam os cargos mais importantes na vida do país, acham que podem tudo, que o poder é eterno, que podem fazer o que quiserem e que jamais serão punidos? E já que o poder é tão bom, que vale tudo para que ele seja eterno? Não só eles, mas também seus amigos, seus ajudantes nos crimes, do mais humilde dos contínuos ao mais íntimo doschefões, todos se acham imunes às leis. Se não fosse assim, não fariam o que fazem quase todos os que têm o poder. E no caso em questão, não me parece que quisessem tanto dinheiro para ficarem ricos _ não todos _, mas para poderemcontinuar poderosos.
          Mas talvez eu esteja enganada; os que mandam num país devem se sentir tão onipotentes que nem acham que estão fazendo alguma coisa de errado. Podem tudo e, claro, queremcontinuar podendo.
          Fico pensando em Katia Rabello, presidente do Banco Rural, que se meteu nessa enrascada nem sei bem por que. Ela já era rica o suficiente, importante o suficiente, inteligente _ imagino _ o suficiente, como é que foi entrar nessa? 16 anos de prisão é muito tempo, e se fosse só um ano também seria; como é que se encara o futuro, depois de receber uma pena dessas?
          A ambição é um perigo, seja ela de que tipo for. Quando as pessoas querem mais, sempre mais, fazem qualquer negócio para conseguir. Mesmo que no fundo de algum desses réus que foram condenados houvesse (talvez) um ideal, o ideal de transformar o país, não há quem me convença de que o poder não lhes subiu à cabeça. Entrar num restaurante e ser saudado com mesuras pelos garçons, ter a melhor mesa, ser paparicado por todos, isso deve deslumbrar muita gente, sobretudo os que nunca tiveram essas regalias. Mas essas regalias não eram para eles, e sim para ocargo que tinham, e assim que outra pessoa assume esse lugar, elas automaticamente são dirigidas aos novos ocupantes dos cargos. E o que são essas regalias, no fundo? Rigorosamente nada.
          E será que é tão importante assim ter gente em volta, literalmente _ e desculpem a expressão _ lhes puxando o saco? É preciso ser muito ingênuo ou muito despreparado para se deslumbrar com essas coisas.
          O curioso é que a maioria dos que foram condenados sofreram na carne os horrores da ditadura, e quando, depois de muita luta, chegaram ao poder, ficaram muito parecidos com os que comandavam o antigo regime. Não prenderam nem torturaram ninguém, mas em matéria de autoritarismo se comportaram da mesma maneira.
          O que me leva a pensar que todo radicalismo, seja ele de esquerda ou de direita, são muito parecidos, e que a única diferença entre eles é que estão em campos opostos.
          E dizer “não vi”, como disse Lula quando perguntado sobre as penas que sofreram seus companheiros, foi constrangedor. Uma vergonha, vindo de um ex-presidente daRepública.

domingo, 11 de novembro de 2012

Uma volta no tempo




Domingo, 11de novembro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


Quem diria que anos depois _ muitos anos depois _ iamos nos cruzar numa rua de Paris.
          Foi absolutamente inesperado; eu ia andando, ele vinha de outra rua, e quase nos esbarramos, o que felizmente não aconteceu. Apesar do passar do tempo, nem por um minuto duvidei que fosse ele. Quando nos conhecemos ele devia ter uns 30 anos, mais uns 20 tinham se passado, e estava mais bonito do que havia sido. Os cabelos um pouco grisalhos, os traços mais firmes, de homem, e o corpo, o mesmo. Ah, que boa história foi aquela.

         Não foi um caso de paixão, mas sim de amor, amor romântico. Terá durado um mês, dois? A verdade é que naquele tempo uma viagem a Paris tinha que ter, obrigatoriamente, um namoro. Nos víamos todos os dias, e quando o revi lembrei do fim de semana que passamos em Deauville em pleno outono, as florestas que percorremos com as árvores em tons que iam do amarelo ao vermelho, passando por todos os tons de castanho, que lindas lembranças. Depois a volta, já com os dias contados para eu voltar.

         Não se falava disso, claro, e houve a penúltima noite, e a última, e nos separamos sabendo que seria para sempre; calados, pois não havia nada a dizer, nem planos a fazer. Apenas sofremos, de mãos dadas e sem coragem de nos olhar. O tempo passou e a lembrança ficou.

         Mas nunca me se esqueci dele; não totalmente. Dos passeios no Luxembourg, dos cafés onde nos sentávamos durante horas contando nossas vidas, falando do passado mas sem ousar falar de futuro, pois o futuro para nós era fora de questão. Foi um amor lindo, inesquecível, e nunca mais nos vimos nem nos escrevemos, nada. E ali estava ele, a dois passos de mim.

         Teria ele se casado? Continuaria só? Se lenbraria de mim, pelo menos às vezes? Tive vontade de correr para ele, mas e a coragem? Lembrei da música de Chico que diz que é desconcertante rever um grande amor. E como é.

          Vi quando entrou num edifício e fiquei por ali, disfarçando, esperando que ele saísse, o que aconteceu uma meia hora depois. Durante esse tempo meu coração bateu loucamente, e eu pensava: falo com ele ou não? E se ele me der um olhar gelado? Afinal, tantos anos depois, tantas coisas devem ter acontecido em sua vida.Quando ele enfim saiu ainda o segui por uns minutos, mas pensei: calma, Danuza, o que passou passou. Não para todos, não para mim, mas coração de homem é diferente.

         Ele parou na rua, fez sinal para um taxi. Era agora ou nunca, e foi nunca. Tive medo de que ele me tratasse friamente, como uma amiga, ou demorasse a me reconhecer.

         Ou pior, que não me reconhecesse.

                                                   X X X

 Esse encontro aconteceu há uns 15 anos ou até mais. Nunca mais nos cruzamos, e a vida seguiu, como costuma seguir, e escrevi esse registro aí em cima para nada, apenas um hábito que tenho.

         Na última vez em que estive em Paris comprei, como faço sempre, as revistas locais, inclusive a Paris Match, onde ele trabalhava. E folheando a revista vi um texto com umapequena foto dele _ que custei a reconhecer _, e o título: So Long, Bernard. Era uma despedida da revista onde ele trabalhou a vida toda.

          Eu podia ter falado com ele, devia ter falado com ele. Ou não? Que mania, essa, de não aceitar que as coisas se acabem completamente, por que isso? E tenho pensado nele, muito mais do que quando nos separamos séculos atrás.

         São tantas as perguntas, e tão poucas as respostas. 

sábado, 10 de novembro de 2012

Sanatório Geral (Licença Chico )




Domingo, 4 de novembro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


Sempre ouvi falar que decisão da Justiça não se discute, se acata. Mas não é o queacha o Partido dos Trabalhadores.
               Há os que dizem que um passado limpo tem que ser levado em conta na hora da aplicação das penas.  Dentro dessa teoria, Marcos Valério não poderia ter sido condenado a 40 anos de prisão, quando o norueguês que matou 77 pessoas foi condenado a 21 anos, e se o pai de Isabela Nardoni e sua madrasta foram condenados, respectivamente, a 31 e 27 anos de prisão, como então condenar por crimes que nem foram de sangue, pessoas de “alto valor social”, se os crimes destes indivíduos foram apenas de colarinho branco? Os exemplos se multiplicam, e o PT se prepara para uma grande campanha a favor dos pobres condenados, valorosos combatentes contra a ditadura que lutaram pelavolta da democracia. Nesse tempo eles conviveram com o autoritarismo, e  pelo visto aprenderam e gostaram. Eles lutaram pela democracia? Lutaram, sim. Assaltaram os cofres públicos para poderem se perpetuar no poder? Assaltaram, sim. Quem diz isso não sou eu, são os ministros do Supremo Tribunal Federal, e entre acreditar no que dizem osréus, seus advogados e o PT, ou ministros do quilate de Celso de Mello, Ayres Britto, Marco Aurélio Mello, Luiz Fux, Joaquim Barbosa, fico com os últimos.
               Assisti a todas as sessões do mensalão; no início com alguma dificuldade para entender o que diziam, e depois já mais familiarizada com o juridiquês. Lembrei da CPI, dos depoimentos, fiquei sem entender quem enviou o dinheiro para pagar a Duda Mendonça _ mas não é crime, enviar dinheiro para o exterior? E quem mandou,afinal? _ e confiei no julgamento dos ministros. Afinal, se não se confia no que dizem os ministros da Suprema Corte _ tirando uma ou duas exceções _, confiar em quem?
              Ainda vamos ter muito tempo para os acórdãos, os memoriais, o recesso do Judiciário, o Natal, o Carnaval e a Semana Santa, tempo é que não vai faltar. E leio estupefata, na Folha, que José Genoíno, condenado por corrupção e formação de quadrilha, tem o apoio do PT para assumir uma vaga na Câmara de Deputados, já que é suplente de um deputado que foi eleito para a prefeitura de São José dos Campos. O PT apoia e, segundo o presidente do partido, Genoíno vai assumir “sem problema algum”. Alguém deve estar louco neste país.
              Os alguns deputados já condenados continuam deputados, e os ministros do Supremo ainda vão decidir se eles vão perder os mandatos. Mas na opinião do presidente daCâmara, Marcos Maia _ do PT, é claro _, a cassação deve passar pelo plenário. E se a maioria dos deputados for contra a cassação, como é que fica?
              Uma curiosidade: que tipo de solidariedade o ex-presidente Lula vai prestar a seus antigos amigos, companheiros que o ajudaram a fundar o partido, que partilharam com ele do poder, e que agora estão na pior? Um churrasco seria o mínimo, pela antiga amizade.
              E a pergunta que não quer calar: quem é, afinal, Dilma Roussef? De quem se trata? Às vezes ela faz um agrado à opinião pública e demite alguns ministros, ministros cujas roubalheiras são chamadas de “malfeitos” e foram denunciados  pela imprensa, pois ela não sabia de nada, claro; seus apagões são chamados de apaguinhos, quando Lula chama ela vai correndo a SP receber suas ordens, tipo nomear Marta Suplicy para um ministério para em troca ela fazer campanha para o Haddad, e já se murmura que lá pelofinal do ano, quando as coisas tiverem esfriado, pode haver uma anistia geral aos criminosos, basta Lula querer.
              Mas que país.


segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A princesinha do mar



Domingo, 28 de outubro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo



Copacabana é um bairro que saiu de moda, mas que tem sua vida própria, e diferente de tudo.

           Outro dia fui levada por um amigo para conhecer um restaurante famoso por suas empadas, e me senti em outro universo; apesar de ser colada a Ipanema, que é colada aoLeblon, nada mais diferente do que esses bairros. O restaurante é na BarataRibeiro, rua de tráfego intenso de ônibus, vans e motos, com direito a toda a fumaça e a todo o barulho do mundo. Numas prateleiras altas, garrafas de vinho Gatão e Periquita, e num quadrinho, a advertência: “Ao mastigar, cuidado com o recheio da empada. A azeitona tem caroço”. Adorei.

           Chama-se O caranguejo, e é o oposto de um lugar cool, moderno e da moda; os garçons não foram escolhidos por sua beleza e juventude, e via-se, pela intimidade que tinham com a casa, que devem trabalhar lá há mais de 20 anos; qualquer prato pedido alimenta 3 com fartura _ e todos são muito bons. A salada era típica de um restaurante que não é da moda: 3 folhas de alface, 3 rodelas de tomate e, em cima, 3 grossas rodelas de cebola. Tudo que a gente esqueceu que existia, mas que em Copacabana continua no auge da moda.

           Agora, a frequência: muitos homens usavam camiseta sem manga, todos, praticamente, tinham barriga, e as mulheres _ bem, nenhuma poderia aspirar a ser uma top model _ e elas não estavam nem aí. Ninguém usava uma só peça de grife, ninguém falava no celular, a conversa nas mesas era animada e embalada pelos chopes que alternavam com os copinhos de steinhagen, uma espécie de cachaça alemã, só consumida por profissionais. Como o restaurante fica na esquina de uma rua que começa na praia, é muito ventilado, por isso não havia ar condicionado.

           O clima do Caranguejo é familiar; os frequentadores devem ser sempre os mesmos, tanto que se falam de uma mesa para outra, e são de uma enorme gentileza; um deles meofereceu (da mesa dele) uma travessa com patinhas de caranguejo, coisa que não lembro de ter acontecido, jamais, em minha vida. E eu aceitei, claro.

           A animação é permanente: a partir das 11h da manhã todos já estão comendo muito, bebendo muito, e esse clima continua a tarde inteira, entrando pela noite. Às vezesentram famílias com crianças, e suas respectivas mães e avós, todos têm muito bom apetite e imagino que lá nunca tenha sido pronunciada a palavra dieta.

           Mas por que estou falando de um lugar tão simples, mais para o modesto, sem uma só das frescuras que têm todos os restaurantes chamados chiques; começa pelas insuportáveis moças na porta de preto longo, salto alto, que faz logo a pergunta “tem reserva?” Como eu nunca faço reserva, e o restaurante está vazio, digo que não, e ela me encaminha para a mesa. Mas se está vazio, para que apergunta? Não entendo, e não vou, jamais, entender.

           E se falo sobre este restaurante é porque me encanta esse clima simples, onde se come bem _e barato _, e no final o garçon pergunta “quer que faça uma quentinha para levar o que sobrou”? Sim, porque sempre sobra.

           Não que eu não goste de frescuras; até gosto, mas o tempo todo é insuportavel. E um lugar como esse me faz um bem tão grande ao coração e à alma que não sei nem explicar mas que me faz feliz, só de saber que certas coisas simples ainda existem.

           PS – e ainda tem caranguejo no toc toc, que vem inteiro, acompanhado de uma taboinha e um soquete, para poder passar o dia inteiro ocupado na nobre arte de comer um caranguejo comme il faut.

domingo, 21 de outubro de 2012

A atenção


Domingo, 21 de outubro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


Afinal, o que todos queremos da vida _ além do básico, claro? Bem, para começar, é preciso definir o que é o básico.
O básico é igual para todo mundo, seja você banqueiro ou Zeca Pagodinho: um bom Jaqueirão para receber os amigos, saúde, uma certa beleza física, algum dinheiro, que não faz mal a ninguém, um pouco de amor, que faz bem enquanto dura e mal quando acaba, e por aí vai. Mas mais que tudo, o que todos queremos, do berçário até a mais provecta idade, é o bem mais precioso: um pouco de atenção.
Para isso, somos capazes de tudo; uma criança, na hora de deitar na cama para dormir, quer a presença da mãe, só olhando. Muito mais tarde, mesmo depois dos 40, os homens vão fazer o que mais gostam _ surfar _, e querem que a namorada fique sentadinha na areia, só olhando.
Ninguém suporta ser completamente anônimo, e por isso as pessoas passam a vida buscando o dinheiro, a beleza, o poder ou a fama, para serem reconhecidas pelo garçom quando entram num bar. Tem gente que vai ao mesmo restaurante só por isso, só se hospeda no mesmo hotel, e outros _ mais do que você pensa _ contratam um divulgador, essa profissão tão moderna, para cuidar de sua imagem, o que significa conseguir publicar uma foto ou uma notinha no jornal de vez em quando. Para quê? Ora, para existir; Nizan Guanaes já disse que o marketing é tudo na vida das pessoas.
Crianças fazem tudo que passa pela cabeça; sem nenhuma censura, elas choram e gritam para chamar atenção; mais tarde quando aprendem que não podem mais abrir o berreiro, vão por outros caminhos, paraterem certeza de que existem. Umas se vestem de paetês, outras se queixam de doença _ e às vezes se esforçam tanto que ficam doentes mesmo, e dá para entender: qualquer coisa na vida, qualquer, é melhor do que a indiferença.
Uns engordam, outros pintam o cabelo de verde, alguns tentam uma carreira de sucesso, de preferência no show business, para serem sempre notados, e quanto mais notados, melhor. Não se trata apenas de vaidade: é uma questão de ter a consciência de que estamos vivos, e se ninguém nos olha é porque não estamos. E se não estamos, de que adianta ter um coração batendo?
Por que você gosta tanto de ir ao médico? No curto tempo de uma consulta _ e não se está falando de saúde _ a atenção é toda dirigida a você; existe alguma coisa melhor do que ter alguém, mesmo que seja um estranho, perguntando como vai seu apetite, se tem dormido bem, que diga que você precisa deixar de fumar? Atenção: são raros os que fazem isso, pois a maioria pede uma lista de exames e diz para você voltar com os resultados.
E os analistas? Esses são maravilhosos: durante 50 minutos você tem uma pessoa inteligente que ouve os maiores absurdos, compreende tudo _ que delícia _, justifica tudo _ melhor ainda _ e você até sente que não está mais só no mundo. Se ninguém te dá atenção você não existe, daí o drama dos famosos quando voltam ao anonimato.
Atenção verdadeira é fundamental. Quando sua empregada disser que está resfriada, tire dois minutos _ só dois _ do seu dia, que tem 1.540, para saber o que ela está sentindo, e diga para ela pegar nobanheiro o vidro de vitamina C que você trouxe de Nova Iorque e tomar 3 por dia. Lembre-se de que é ela quem serve seu café da manhã, leva um chazinho quando você chega cansada, tira gelo, lava e passa sua roupa e faz tudo para te agradar.
E quando chegar em casa à tarde, se esqueça, apenas por uns segundos, do mensalão, do segundo turno das eleições, do seucabelo que está péssimo, e pergunte se ela está melhor.
Não adianta ter todo o poder e todo o dinheiro do mundo se ninguém pergunta se você melhorou da gripe.



domingo, 14 de outubro de 2012

Verão em Salvador


Domingo, 14 de outubro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


Foi meu verão inesquecível; aliás, foram dois, pois no ano seguinte eu voltei.
Há anos aluguei uma casa por telefone, na Pituba. Contratei uma cozinheira baiana e logo descobri que tinha várias assessoras na cozinha: uma para catar siri, outra para descascar camarão, outra para ralar coco, outra para se ocupar dos bolos, biscoitos, sobremesas. Na mesma temporada lembro que fui passar uns dias em Mar Grande (antes da ponte), e logo de manhã passavam os locais apregoando sua mercadoria: camarão fresco, peixe saído do mar, lagosta, mariscos, siri mole, tudo na porta, levado por um burrico. Como esse comércio começava cedo, havia um funcionário (da casa) contratado apenas para ficar na porta desde cedo, e alerta; quando alguém ia anunciar o que tinha para vender, ele fazia um sinal com o dedo na boca para que não gritasse, para não acordar as pessoas. Ah, Salvador, que paraiso.

            A casa que aluguei era grande, volta e meia chegavam hóspedes, e não se fazia rigorosamente nada. O único esforço intelectual era escolher a que praia iríamos: Piatã, Itapoã ou Arembepe, todas com a água do mar na temperatura certa e sem ondas. A mesa era sempre farta e só se comia comida com dendê e leite de coco; aliás esse capítulo começava no café da manhã, com direito a cangica, tapioca, banana da terra cozida, e nem sei mais o que. Durante a temporada nunca se bebeu nada além dos sucos de frutas da terra, naturais ou com uma cachacinha. Só se usava uma sandalinha de palha, e só se tirava o biquini na hora de dormir. Passávamos a tarde nas redes da varanda, e nunca vou esquecer que um dia, depois do almoço, a cozinheira me levou uma bacia cheia de bagos de jaca que passei a tarde comendo. Ninguém engordava.

            Só saíamos de casa para ir às festas de largo, que começavam em dezembro e acabavam no carnaval. Meu filho Bruno, que tinha 10 anos, me disse que nunca foi tão feliz; durante todo esse verão ele nunca ouviu um não da minha boca: tudo podia.

            Todos os dias eram domingo, não se lia jornal, não havia telefone nem televisão, os dias eram todos de sol, e só se fazia rir e falar bobagem, assim por nada. E havia a cor do mar de Salvador, e o cheiro de Salvador, e o som de Salvador, e a hospitalidade da gente de Salvador, pobres e ricos. Nesse verão, um baiano me fez um oferecimento muito especial, que nunca esqueci; quando eu morresse estava convidada a ficar nomausoléu da sua família, tem mais gentil?

            Não sei se na época eu me dava conta do quanto era feliz, mas hoje, quando me lembro, penso que foi dos melhores tempos de minha vida.

            Essas lembranças são um tesouro que tenho dentro do peito, e que ninguém, nunca, vai me tirar. Que pena não poder votar em Salvador, nesse segundo turno; é tão bom votar.

                                                  X X X

            Desculpe, mas vamos voltar um pouco à real. Então, depois do julgamento do mensalão, a CPI do Cachoeira vai encerrar os trabalhos? Não vamos poder saber das relações do governador Sergio Cabral com Fernando Cavendish, dono da Delta? Segundo a imprensa, pelas contas bancarias dos investigados passaram 36 bilhões _ bi-lhões _ cuja origem e destino ainda são ignorados. Que respingue no PSDB, no PT, no PMDB, não importa, e é um escândalo que o PSDB e o PT estejam de acordo em blindar osacusados. Os dois partidos, teoricamente rivais, nessa hora são tão sem escrúpulos um quanto o outro, e nenhum negócio que envolve 36 bilhões _ em negócios com o governo _ pode ser honesto. E as contas da Delta são o maior dos segredos de Estado.

sábado, 15 de setembro de 2012

Tudo é noticia


Domingo, 16 de setembro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


Todo dia aparece uma novidade que ocupa o noticiário; passa o tempo, e um dia vem outra, muitas vezes desdizendo a primeira. Um exemplo: há anos os dermatologistas dizem que não se pode sair de casa, nem para ir na banca de jornal, sem protetor solar; alguns, mais radicais, mandam usar protetor até em escritórios onde a luz é fria, e raros são os liberais, que deixam que se tome 10 minutos de sol às 7h da manhã _ e mesmoassim, usando protetor no corpo inteiro.

         Acontece que não se vai à praia só por prazer; praia, aliás, é das coisas mais desconfortáveis que existem, e onde se vai, sobretudo, para pegar uma cor; só que, com o protetor, passamos o verão inteiro cor de bicho de goiaba (branca), o que não é justo. Aí eu vejo centenas, milhares de pessoas, tomando sol até 3, 4 da tarde, gente bronzeada mostrando seu valor; abro uma revista e vejo fotos das mais lindas atrizes, nas mais maravilhosas praias, todas parecendo irmãs de Gabriela, e fico pensando. Será que o sol da Sardenha e de St.Tropez é diferente do nosso? Afinal, achar umlugarzinho na areia, morrer de calor debaixo do sol e sair branquinha, não tem nenhuma graça, e um passeio de barco é um castigo que não se deve desejar anenhum inimigo: o barco balança, a comida é ruim e pouca, e o gelo acaba naprimeira meia hora. Branca para sempre? Mas que castigo.

        Mas eis que surge uma nova onda; segundo ela, usando o tal protetor, o cálcio, tão importante na vida até mesmo dos bebês, não é absorvido pelo organismo, e a falta de cálcio é um convite à osteoporose, o que faz total sentido. A vida é um problema.

        Durante um bom tempo, falou-se muito de bullying e as psicólogas, educadoras e psicanalistas deram as mais inteligentes opiniões sobre o assunto, que afinal nem é tão novo assim _ só o nome é novidade. Sempre se soube o quanto as crianças podem ser cruéis, e desde que o mundo é mundo maltratam os colegas que não são iguais a elas, ou porque têm cabelo vermelho, ou porque usam óculos e por aí vai; vão aprender, mas só com o tempo _ e nunca mais se falou no tal de bullying.

        A última das novidades é que se pode _ ou se deve _ decidir (em termos) sobre nossa própria morte, e deixar tudo por escrito, isto é, como encarar a hora final. É uma idéia, mas uma idéia _ data vênia _, dolorosa, pensar e depois escrever como programar nossos últimos minutos. E quem dá a ordem ao médico para desligar os aparelhos? E se houver ainda uma esperança de vida e o médico tiver se enganado? E se, e se, e se? Um pesadelo, e até o momento, não me vejo com coragem de enfrentar o assunto; mas mesmo sem querer, pensei nele outro dia.

        Foi curioso; eu sofro de insônia, e já acordo ligada, sempre. Mas ontem, quando acordei, estava sonolenta. Sabe quando a gente diz “estou morrendo de sono?”, coisa que aliás não acontece nunca aos insones? Pois foi assim. Não sei quanto tempo durou, mas foi muito bom eu estar “morrendo de sono” e poder ficar na cama, aproveitando esse momento raro e preguiçoso, dormindo mais um pouquinho. E pensei: isso não se pode deixar por escrito, mas seria bem bom terminar a vida assim: morrendo de sono.

        Mas quem pode nos dar essa felicidade? Um parente, um amigo, o médico? Sei lá.

        Sei lá, pois delegar a alguém essa responsabilidade não é fácil. E quem quer ter esse poder? Um filho, um amigo? Não penso que eu aceitaria, se alguém me pedisse.

        O que me leva a uma só conclusão: a vida já foi mais simples, e a morte também.

domingo, 9 de setembro de 2012

Pondo os pingos nos is



Domingo, 9 de setembro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo

A Bienal de São Paulo deste ano vai ter Arthur Bispo do Rosário como sua estrela maior, e ele merece. É fundamental ver suas obras e se comover com a beleza da obra desse singular personagem, marinheiro em sua juventude.

          Um dia, a partir de uma alucinação, Bispo se acreditou enviado de Deus, razão que o levou a ser internado na Colônia Juliano Moreira, um depósito de loucos, lugar onde as pessoas entravam e só saiam depois de mortos. Lá ficou durante 50 anos, sendo que parte deles encerrado dentro de uma pequena cela, de onde se recusava a sair.

          Foi nessa cela que Bispo começou a trabalhar com tudo que encontrava: tirava fios de camisas e lençóes, um por um, para costurar, usava palha de vassouras de piaçava, botões, colheres, canecas, pentes, tampas de garrafa, objetos hospitalares e toda a sucata disponível e com isso produzia objetos insólitos; em suas mãos tudo virava arte, seus estandartes eram comoventes, mas nada foi mais grandioso que o Manto da Apresentação. Nesse manto, que bordou durante 30 anos, ele catalogou o mundo, bordando nomes de pessoas, artistas, cantores, países, acontecimentos, faixas de misses, retratando tudo que ele lembrava ou ouvia falar que existia; tudo que ele fazia era perturbador. Esse manto foi feito para ser usado no  momento em que o mundo se encontraria com o Todo Poderoso, e que seria seu grande encontro com Deus.

          Chamado de “o senhor do labirinto”, Bispo tinha seu universo particular, alucinado e delirante, mas sempre com algo de sagrado. Suas obras, que foram expostas na Bienal de Veneza, devem ser vistas com muita atenção, lembrando das circunstâncias e condições em que foram criadas. Há muitos anos vi uma exposição dele no Rio, numa pequena sala num 15º andar, se não me engano da Caixa Econômica, e que não fez nenhum sucesso. Ele ainda não era famoso, mas eu tinha minhas razões para ir vê-la, e vou contar.

          Num domingo de 1980 eu estava em casa, quando me telefonou um jovem repórter da TV Globo, dizendo, em tom urgente e excitado, que eu não podia deixar de ver o Fantastico naquela noite. Ele havia ido fazer uma matéria para expor as terríveis condições dos internos da Colônia Juliano Moreira, e como era muito curioso, como todo bom reporter, foi fuçando tudo, até que viu uma cela escura; entrou e encontrou um estranho homem, sozinho, cercado de panos bordados e objetos sem nenhum significado aparente. Ele entrou e conseguiu dialogar com o homem (que você já adivinhou ser Bispo do Rosário). Rolou uma simpatia, e Bispo não só mostrou tudo que vinha fazendo há 7 anos, sem sair da cela nem um só dia, como também contou de onde tirava o material, e como fazia suas obras, o que deu uma matéria inacreditável no Fantástico; foi depois desse programa que Bispo do Rosário surgiu para omundo.

          A partir daí a classe artística o descobriu, suas obras foram expostas em museus, galerias, e livros escritossobre sua pessoa. Livros que ele provavelmente não entenderia, se lesse.

          Um ser tão extraordinário como Bispo do Rosário seria descoberto mais dia menos dia, imagino. Ou não; e se algum servente do hospital resolvesse fazer uma faxina em sua cela antes da matéria aparecesse na TV, e jogasse tudo que encontrasse num lixão?

          Nunca vamos ter resposta para isso, e não me lembro de jamais ter ouvido alguém citar o nome desse reporter, o primeiro a vislumbrar a importância de Arthur Bispo do Rosário, mas eu sei quem ele foi.

          Seu nome era Samuel Wainer Filho, e ele era meu filho.


   

sábado, 1 de setembro de 2012

Certa Pobreza


Domingo, 2 de setembro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


Outro dia tive que ir ao centro da cidade, onde não ia há anos. Conheci esse centro quando ainda era criança, e tinha chegado do Espirito Santo para viver no Rio. Na Zona Sul não havia lojas, ainda não existiam as butiques, e uma vez por semana ia com minha mãe ao centro. Era onde se fazia compras, desde as mais banais, até às mais importantes, que na época era um par de sapatos ou o tecido para fazer um vestido. Não existiam vestidos prontos, e cada família tinha sua costureira. Comprava-se o figurino (revista de moda), a costureira dizia quantos metrosprecisava, se fazia uma prova, e um dia chegava um embrulho de papel cor derosa, fechado com alfinetes _ o durex ainda não tinha sido inventado _ trazendo o vestido. 
          Era uma emoção ir ao centro, onde havia um comércio que me parecia o luxo dos luxos. Havia até lojas que vendiam casacos de pele, e imagino que fazia frio no Rio para usar peles – devia fazer -, pois as vitrines das lojas Canadá e Sibéria mostravam as mais lindas. Depois das compras, um lanche na Colombo, e a volta para casa de bonde. Era um diacompleto, de total felicidade. Foi lá que pela primeira vez tomei um sundae e comi uma coxinha de galinha; em Vitória não existiam essas coisas chiques.

          O mundo mudou, há anos não ia ao centro, mas tive que ir, semana passada. Passei pelas mesmas ruas e me deu uma tristeza tão grande que era melhor não ter ido. Fui parar no Largo da Carioca; é um largo, como diz a palavra, onde hoje as lojas são barraquinhas, e havia uma que, para animar, tocava um som bem alto. Das músicas, nem vou falar. Mas o que me impressionou mesmo foi a quantidade de pessoas que circulava por ali. Era muitas e todas, absolutamente todas, muito pobres.

          Em qualquer bairro do Rio existe gente pobre, mas não tantas assim, nem tão pobres. Era uma miséria absoluta, que se via nas roupas, nos sapatos _ a maioria com uma sandália havaiana já bem usada _, e nos rostos. Muitas lanchonetes pela rua, e numa delas o cartaz: “Arroz, feijão e batata frita por R$ 10,50”.

          Fiquei pensando nos pobres do Nordeste, que se vê na televisão e em alguns filmes brasileiros; eles moram em casebres com chão de terra batida, sempre muito bem varrido. E têm uma dignidade; não sei bem de onde ela vem, mas ela existe. Talvez por terem umpedacinho de chão só deles, talvez. A pobreza urbana é agressiva; são mulheres com uma criança no colo, duas pela mão, levadas pelas mães porque não têm com quem ficar, adolescentes de short e camiseta que deve ser a única roupa que têm. Ninguém pedia esmola, todos estavam ali fazendo alguma coisa, trabalhando, encarando um bico qualquer, talvez de ambulante, talvez de ajudante de camelô.

           E notei que apesar dessa miséria tão evidente, tão dramática – essas pessoas nào pertenciam, seguramente, à tão falada classe C -, quase todas as mulheres, e as crianças que iam junto, tinham as unhas dos pés pintadas de esmalte colorido.

           E me ocorreu que talvez seja esta a única fantasia a que têm direito.





domingo, 26 de agosto de 2012

E A CPI DO CACHOEIRA?




Domingo, 26 de agosto de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


O julgamento do mensalão demarrou – enfim -, mas a CPI do Cachoeira continua em ponto morto. Não é segredo paraninguém que há uma blindagem para que ela não prossiga, com o propósito claro de não salpicar lama no governador Sergio Cabral. Mas já salpicou.

        No Brasil com tantas leis, tantas brechas, tantas filigranas que qualquer advogado de porta de xadrez encontra para proteger seus clientes ou postergar os julgamentos, será que não existe nenhuma possibilidade que impeça os convocados de ficarem calados quando interrogados, como permite a Constituição? É inacreditável: alguns, assim que convocados, já entram com pedido de habeas corpus antes do comparecimento, para ter o direito de não falar; e se ninguém fala, não há CPI que prospere.

        Se os convocados tivessem que jurar sobre a Biblia, como se vê nos filmes americanos, também não adiantaria: eles mentiriam com a cara mais limpa, como aliás fizeram todos os réus do mensalão. E como o mensalão é a grande novela do momento, fala-se pouco da CPI do Cachoeira.

        Se for aberto o sigilo bancário da Delta de muita coisa vai se saber, mas como os interessados em que nada apareça são maioria na CPI – afinal, o governador do Rio é assim, ó, com a presidente Dilma – já se sabe que quando Cavendish aparecer para depor vai fazer como todos os outros fizeram até agora, isto é, vai entrar mudo e sair calado; se ele for, claro. Isso é um escárnio, seja o convocado do PT, PSDB ou PMDB. Ésimples: eles têm que falar.

        Será que não há um jurista, um advogado, um senador, uma autoridade, enfim, que encontre uma maneira de obrigá-los a responder às perguntas? Eles pensam que o episódio grotesco da dança em Paris, com os guardanapos na cabeça, já foi esquecido, e o governador segue a linha Lula: se esconde e não diz uma só palavra. Pensa que os eleitores se esquecem, e vai ver, tem razão. Vide Maluf; não tem gente que ainda vota nele? E por que não abrem as contas bancárias da Delta, como forçar para que isso aconteça? Afinal, nunca se ouviu falar de uma empreiteira que tenha conseguido fazer tantas obras em tantos estados do país.

        Cavendish sumiu do mapa, ninguém sabe, ninguém viu. Não é mais presidente da Delta, não é mais visto em lugar algum. Se ele não falar, como os outros fizeram até agora, vai dar razão a quem diz que trata-se de uma máfia, cujo código de honra é o silêncio, a famosa “ormetá”. É só lembrar de Don Corleone, no Poderoso Chefão. Quem será o “capo”?

        Enquanto escrevo, acompanho pela televisão o voto do ministro Ricardo Lewandowski, ex vice-diretor da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, com sua toga de veludo, que já absolveu João Paulo Cunha, até agora, de dois crimes. Nenhuma surpresa: o Brasil inteiro já intuía como seria o voto do ministro.

        Voltando à CPI do Cachoeira: não é possível que se ouça, também de Cavendish, o que já virou chavão: “Segundo a Constituição, vou usar do meu direito para não responder”.

        Não pode, ou melhor, não deveria poder. Tem que responder.

sábado, 18 de agosto de 2012

Se eu pudesse



Domingo, 19 de agosto de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo



Se eu pudesse, mudava minha vida toda; não que ela esteja ruim, mas só para ver que ela pode ser diferente.
Se eu pudesse, me desfaria de muitas coisas, da minha casa e de quase todas as roupas. Afinal, quem precisa de mais do que dois pares de sapatos, dois jeans, quatro camisetas e dois suéteres, sobretudo quando anda pensando em mudar de vida?
Se eu tivesse muitas jóias enterrava todas elas na areia da praia para que um dia alguém enfiasse a mão brincando, assim para nada, e tivesse a felicidade de encontrar um colar de brilhantes. Afinal, dá para viver sem, não dá?
Das algumas garrafas de champanhe guardadas cuidadosamente, na horizontal, daria para abrir mão, sem nenhuma possibilidade de remorso futuro; champanhe, além de engordar, não passa de um espumante metido a alguma coisa, e nem barato dá, de tão fraquinho que é. Dos vinhos,mais fácil ainda; nada melhor do que o velho e bom uísque, com o qual sempre se pode contar.
E as amizades? Aliás, as amizades, não: as relações. Ah, se tivesse coragem, compraria um novo caderno de telefones e passava só aqueles pouquíssimos nomes que realmente têm algum significado, e que são tão poucos que nem precisaria escrever. Guardaria todos de cor, não na cabeça, mas no coração, e um dia me esqueceria de todos eles.
Se eu pudesse, iria recomeçar a vida em outra cidade, talvez em outro país, para nada, só para começar tudo do zero. Para às vezes sofrer bastante, pensando que poderia ter tido mais juízo e não ter feito tantas bobagens, pois se tivesse errado menos poderia ter sido mais feliz _talvez. Mas alguém tem o poder de fazer alguém sofrer, ou a capacidade do sofrimento é um bem pessoal e intransferível? Se alguém conseguisse ainda me fazer sofrer, seria um acontecimento a ser festejado.
Se eu pudesse _ e não tivesse tantos compromissos _ seria vegetariana, passaria as noites em claro e teria muitoamor pelos animais e pelas crianças. Mas como tenho horror a qualquer bicho e nenhuma paciência com criancinhas, a não ser com meus bichos e minhas crianças, vou ter que atravessar a vida levando essa pesadíssima cruz _ afinal, ficoucombinado que de certas coisas não se pode não gostar, e se não se gostar não se pode dizer, que vida.
Se pudesse largaria tudo e iria embora para um lugar onde ninguém me conhecesse, onde não teria passado nem futuro; para um lugar esquisito no qual não entenderia a língua do povo nem ninguém entenderia a minha. Seriamos todos, assumidamente, estranhos _ como somos no edifício onde moramos, no local de trabalho, dentro de nossa família. Ou você pensa que alguém conhece alguém porque dá beijinhos no elevador?
Se eu pudesse, quando acordasse hoje de madrugada saía descalça só com um casaco em cima da pele e ia molhar os pés na água do mar, sozinha. Depois, ia tomar um café no balcão de um botequim, como fazem os homens.
Se eu pudesse, rasgava os talões de cheques, cortava os cartões de crédito com uma tesoura, fazia uma linda fogueira com os casacos de pele e ia saber como é que vivem os que não têm, nunca tiveram enunca vão ter nada disso. E aproveitava o embalo para cortar os fios dos telefones, jogar o celular na tela da televisão e o computador pela janela _ deve ser lindo, um computador voando.
Se eu pudesse, raspava a cabeça, acendia dois cigarros ao mesmo tempo e tomava uma vodca dupla, sem gelo, num copo de geléia. E pegaria uma gilete para picar em pedacinhos a carteira de identidade, o passaporte e o CPF, sem pensar um só instante nas conseqüências e sem um pingo de medo do futuro. E jogava na lata de lixo meus lençóis, meus travesseiros de pluma, meu cobertor e engolia minhas pestanas postiças, só para aprender que a vida não é só isso.
Se eu pudesse, esquecia o meu nome, o meu passado e a minha história e ia ser ninguém. Ninguém.
Se eu pudesse, não, se eu quisesse.
Pois é, tem dias que a gente está assim, mas passa.




domingo, 12 de agosto de 2012

BENDITA LOUCURA




Domingo, 12 de agosto de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo



Segundo Luiz Felipe Pondé, só os loucos ainda viajam. Dou total razão a ele, e assumo que sou louca.

        É só aparecer a oportunidade de uma viagem para mais ou menos qualquer lugar que já me alvoroço, e só quando começo a tomar as providências, tipo quem vai cuidar do meu gato, como pagar as contas no fim do mês, e mais mil etcs. _ e isso é só o principio _ percebo a insanidade que é viajar. Quando chego ao aeroporto e vejo a fila, penso na minha casa e tenho vontade de chorar, mas aí não dá mais para recuar.

        Para os loucos, como eu, existe a ilusão de que uma viagem é e será sempre a melhorcoisa do mundo _ aliás, nunca é _ e quando posso, meu destino é sempre Paris. Já vou sonhando com o taxi do aeroporto para o hotel, geralmente conduzido por um motorista francês tendo, no assento a seu lado, um cachorro bem grande (em outros tempos, fumando um gauloise). No rádio, bem baixinho, música clássica; bons tempos. Da última vez o motorista era um asiático que, além de mal falar francês e não conhecer a cidade, passou todo o tempo do trajeto falando no celular, bem alto, numa língua estranha. Foi horrível.

      Logo no primeiro dia, fui avisada: “não vá ao Champs Elysées; não dá nem para andar, de tanta gente, e você ainda se arrisca a ser roubada”. Fala sério: estar em Paris e não poder ir ao Champs Elysées é um mau sinal. Me privei de ver a avenida mais linda do mundo, mas vi, nos cafés, restaurantes e museus, multidões; as grandes cidades estão cheias demais. O mundo está ficando sem graça? Está. Então as viagens acabaram? Não, não acabaram, mas têm que ser repensadas. Eu ando repensando as minhas próximas.

        Segundo disse Humphrey Bogart a Ingrid Bergman, em Casablanca, “we will always have Paris”; nós também sempre teremos Paris, mas em termos. A razão pela qual se viaja, é para ver cidades com características próprias, com coisas que só lá se encontra, mas está difícil encontrar lugares especiais, únicos, já que estão todos tão iguais. A saída? Estou inclinada a pensar que a solução são as pequenas vilas, no interior, ainda não contaminadas pela globalização. Vamos sempre passar porParis, claro (ouvi dizer que Roma ficou fora de questão, tal a quantidade de turistas), mas existem lugares deliciosos que ainda não foram descobertos, onde se pode ser feliz por alguns dias, longe desse insensato mundo.

        Como na Europa os países não têm a dimensão continental do Brasil, a distância entre duas cidades (e até entre dois paises), costuma ser pequena, o que facilita o deslocamento. Da última vez, deixei Paris e fui parar em um pequeno vilarejo na Italia com 6.000 habitantes, nada famoso (poderia ter sido na Espanha, na França, ou em Portugal). Nele, como em quase todos, havia um pequeno palazzo abandonado, uma ruína, e um café na praça, onde passei horas observando o vai-vem dos locais; depois, jantei em um restaurante que não está em nenhumguia, onde comi muito bem e bebi o vinho da região, por metade do preço dasgrandes cidades. Ótimo, pois como dizem os conhecedores da gastronomia, come-se mal em Paris.

        Me senti como num filme de Fellini: os personagens estavam todos lá, era só olhar para reconhecê-los. Foi uma semana tranquila, que virou minha cabeça pelo avesso, com todas as fantasias de praxe: viver numa cidade em que ninguém está conectado, sem ter conhecimento do que está na moda _ nem as comidas, nem os vinhos, nem o último iPad com 350 milhões de programas, nem nada, num clima de paz total, como deve ser bom; será isso a felicidade?

        Impossível saber, mas talvez a resposta seja sim.

        Talvez.

domingo, 22 de julho de 2012

Ter um passado é fundamental




Domingo, 22 de julho de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


Uma paixão é a melhor coisa do mundo _ para quem a está vivendo. Mas para as testemunhas desse sentimento inigualável, tema de inspiração dos poetas, o assunto é discutível.
Por mais que se torça para que as pessoas de quem gostamos se apaixonem e sejam muito felizes, quando isso acontece, a tendência é guardar uma certa distância; com o tempo, essa distância vai ficando cada vez maior, pois quem está apaixonado se transforma em outra pessoa, e tão diferente que ninguém reconhece mais.
Aquela amiga divertida que tinha opiniões engraçadas sobre as coisas e contava histórias escabrosas do passado _ dos outros e dela própria _ cessa de existir. Como vai poder falar sobre o fim de semana que passou em Salvador quando, depois de umas oito caipirinhas, foi dar um mergulho, perdeu o soutien no mar e teve que voltar para a praia mal conseguindo esconder os seios? Todo mundo viu, claro, e até ela achou muito divertido, mas sinceramente: uma mulher pode contar isso diante de um homem profundamente apaixonado? Claro que não.
Como também não pode falar sobre coisas mais calmas, digamos assim: que adorava seu ex-marido, que sofreu muito quando se separou, que andou tendo uns namoros que não deram certo e resolveu nunca mais gostar de ninguém, até que o encontrou etc. e tal. É lindo, mas um homem apaixonado pode ouvir isso numa boa? Difícil.
É da troca de experiências passadas que nascem as amizades, e como nada disso vai poder mais ser falado, os amigos começam a se afastar _os dela e os dele. Passar horas com duas pessoas se olhando olho no olho, mão na mão, sem poder mencionar noites divertidas e loucas vividas em outros tempos, quando saíam da pista de dança às 5h da manhã e ainda iam a um botequim comer um sanduíche de mortadela e beber cerveja, fica difícil. Amigos de pessoas apaixonadas têm que tomar o maior cuidado com o que dizem, para não cometer aquelas indiscreções horrendas _e ninguém quer ficar mudo, quer? Eu, não.
As coisas acontecem naturalmente: os amigos se afastam, eles se afastam dos amigos e se tornam pessoas sem passado _e uma pessoa sem passado não é ninguém; aliás, não é nada. Ninguém pode abrir mão do seu, e olha que cada um de nós tem pelo menos uma coisa _ou várias_ que preferia que não tivesse acontecido ou que pelo menos ninguém jamais soubesse.
Tem mais: uma mulher apaixonada costuma não ter opinião sobre nada: dependendo do parceiro, deixa de fumar, passa a não comer carne vermelha, a só gostar de música clássica _ou pagode ou rock_, a acordar às 3h da manhã para ver a seleção jogar, mesmo odiando futebol _e ainda fazer um café no intervalo do jogo_, e só vota no candidato que seja o mesmo do seu amado. Estar apaixonado e conservar alguma personalidade é praticamente impossível.
Ah, a paixão. É muito boa enquanto dura, mas impede que se viva qualquer outra coisa, a não ser ela mesma.
Um dia _que me perdoem os que estão apaixonados_ cansa. Cansa, não: exaure.
Mas acho que estou falando de coisas de um passado muito, mas muito remoto. Há quanto tempo você não ouve alguém declarar, com todas as letras, que está perdidamente apaixonado?
Eu, há séculos.
PS : duas semaninhas de férias, estou de volta dia 12 de agosto, até.

sábado, 14 de julho de 2012

Querer demais da vida



Domingo, 15 de julho de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo

Costuma ser assim: as pessoas se conhecem, se encantam umas pelas outras, procuram conhecer os amigos, a família, os gostos pessoais, assim descobrir se foram feitos um para o outro, para se unirem e serem felizes, até que a morte os separe. Aí namoram e casam.
Bem, para começar, é raro que duas pessoas se unam e sejam felizes até que a morte as separe, e quando chegam a se descobrir, todo aquele enorme encantamento que sentiram no primeiro encontro começa a complicar. Ela não gosta da mulher do melhor amigo dele _ e já começa a implicar _, ele não vai com a cara da irmã dela _ e já começa a implicar _, um gosta de churrascaria, o outro de um japonês, e por aí vai. Começa então a tentativa de adaptação, cada um abrindo mão de certas coisas para que a relação dê certo. As adaptações que eram feitas nos primeiros dias de namoro com enorme prazer, um ano depois podem virar motivo de mau humor, e a verdade verdadeira é que ninguém gosta de fazer concessões, cada um só quer fazer o que quer e o que gosta. É da natureza humana, e natural, pois se duas pessoas gostam exatamente das mesmas coisas, das mesmas pessoas, sentem fome e sono sempre na mesma hora, e por aí vai, vira uma monotonia sem fim. Então que tal por uma vez fazer tudo diferente, e tentar que tudo dê certo, pelo menos por um tempo?
Seria assim: uma mulher e um homem se conhecem, se olham, e sentem um total arrebatamento um pelo outro. Nesse momento eles sairiam de onde estivessem _ da praia, do bar, da festa _, e passariam a viver só desse amor, só para esse amor. Nesse mesmo dia iriam morar juntos, sem saber dos defeitos um do outro, se esconderiam do mundo, dos amigos, das famílias, e abririam mão de seus desejos mais intensos para agradar ao outro. Não é assim, quando se ama? E como é assim, não brigariam por nada, não discutiriam por nada, não implicariam com coisa alguma, e a vida seria uma total felicidade _ por um tempo, é claro. Mas chegaria o momento em que eles começariam a se conhecer melhor, e a vida real invadiria um mundo que até aquele momento era só deles; com isso viriam as complicações, as de sempre.
Teriam que conhecer os amigos e as famílias, chegaria o dia inevitável em que um deles _ ela _ diria que tem horror a futebol, e ele daria o troco dizendo que odeia os filmes de Woody Allen que foi obrigado a ver, para lhe fazer a vontade. E chegaria o dia cruel em que falariam pela primeira vez sobre política, e que não iriam votar no mesmo candidato. A partir daí, viraram um casal feliz, desses que se vê por aí.
Só que ser apenas feliz, para certas mulheres, é pouco. Algumas dizem ao marido que não têm vocação para a chamada vida normal, que vão embora. E ficam espantadas _ quase decepcionadas _, quando eles dizem estar de acordo. Porque quem viveu momentos tão delirantes, não podem se conformar com menos; querem da vida muito, tudo, tanto, que não aceitam vivê-la como ela é.
E vão, cada um para seu lado, na procura eterna de outros encontros apaixonantes, mesmo que curtos, sabendo que para encontrá-los _ talvez _ vão passar longas temporadas inteiramente sós.