sábado, 15 de setembro de 2012

Tudo é noticia


Domingo, 16 de setembro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


Todo dia aparece uma novidade que ocupa o noticiário; passa o tempo, e um dia vem outra, muitas vezes desdizendo a primeira. Um exemplo: há anos os dermatologistas dizem que não se pode sair de casa, nem para ir na banca de jornal, sem protetor solar; alguns, mais radicais, mandam usar protetor até em escritórios onde a luz é fria, e raros são os liberais, que deixam que se tome 10 minutos de sol às 7h da manhã _ e mesmoassim, usando protetor no corpo inteiro.

         Acontece que não se vai à praia só por prazer; praia, aliás, é das coisas mais desconfortáveis que existem, e onde se vai, sobretudo, para pegar uma cor; só que, com o protetor, passamos o verão inteiro cor de bicho de goiaba (branca), o que não é justo. Aí eu vejo centenas, milhares de pessoas, tomando sol até 3, 4 da tarde, gente bronzeada mostrando seu valor; abro uma revista e vejo fotos das mais lindas atrizes, nas mais maravilhosas praias, todas parecendo irmãs de Gabriela, e fico pensando. Será que o sol da Sardenha e de St.Tropez é diferente do nosso? Afinal, achar umlugarzinho na areia, morrer de calor debaixo do sol e sair branquinha, não tem nenhuma graça, e um passeio de barco é um castigo que não se deve desejar anenhum inimigo: o barco balança, a comida é ruim e pouca, e o gelo acaba naprimeira meia hora. Branca para sempre? Mas que castigo.

        Mas eis que surge uma nova onda; segundo ela, usando o tal protetor, o cálcio, tão importante na vida até mesmo dos bebês, não é absorvido pelo organismo, e a falta de cálcio é um convite à osteoporose, o que faz total sentido. A vida é um problema.

        Durante um bom tempo, falou-se muito de bullying e as psicólogas, educadoras e psicanalistas deram as mais inteligentes opiniões sobre o assunto, que afinal nem é tão novo assim _ só o nome é novidade. Sempre se soube o quanto as crianças podem ser cruéis, e desde que o mundo é mundo maltratam os colegas que não são iguais a elas, ou porque têm cabelo vermelho, ou porque usam óculos e por aí vai; vão aprender, mas só com o tempo _ e nunca mais se falou no tal de bullying.

        A última das novidades é que se pode _ ou se deve _ decidir (em termos) sobre nossa própria morte, e deixar tudo por escrito, isto é, como encarar a hora final. É uma idéia, mas uma idéia _ data vênia _, dolorosa, pensar e depois escrever como programar nossos últimos minutos. E quem dá a ordem ao médico para desligar os aparelhos? E se houver ainda uma esperança de vida e o médico tiver se enganado? E se, e se, e se? Um pesadelo, e até o momento, não me vejo com coragem de enfrentar o assunto; mas mesmo sem querer, pensei nele outro dia.

        Foi curioso; eu sofro de insônia, e já acordo ligada, sempre. Mas ontem, quando acordei, estava sonolenta. Sabe quando a gente diz “estou morrendo de sono?”, coisa que aliás não acontece nunca aos insones? Pois foi assim. Não sei quanto tempo durou, mas foi muito bom eu estar “morrendo de sono” e poder ficar na cama, aproveitando esse momento raro e preguiçoso, dormindo mais um pouquinho. E pensei: isso não se pode deixar por escrito, mas seria bem bom terminar a vida assim: morrendo de sono.

        Mas quem pode nos dar essa felicidade? Um parente, um amigo, o médico? Sei lá.

        Sei lá, pois delegar a alguém essa responsabilidade não é fácil. E quem quer ter esse poder? Um filho, um amigo? Não penso que eu aceitaria, se alguém me pedisse.

        O que me leva a uma só conclusão: a vida já foi mais simples, e a morte também.

domingo, 9 de setembro de 2012

Pondo os pingos nos is



Domingo, 9 de setembro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo

A Bienal de São Paulo deste ano vai ter Arthur Bispo do Rosário como sua estrela maior, e ele merece. É fundamental ver suas obras e se comover com a beleza da obra desse singular personagem, marinheiro em sua juventude.

          Um dia, a partir de uma alucinação, Bispo se acreditou enviado de Deus, razão que o levou a ser internado na Colônia Juliano Moreira, um depósito de loucos, lugar onde as pessoas entravam e só saiam depois de mortos. Lá ficou durante 50 anos, sendo que parte deles encerrado dentro de uma pequena cela, de onde se recusava a sair.

          Foi nessa cela que Bispo começou a trabalhar com tudo que encontrava: tirava fios de camisas e lençóes, um por um, para costurar, usava palha de vassouras de piaçava, botões, colheres, canecas, pentes, tampas de garrafa, objetos hospitalares e toda a sucata disponível e com isso produzia objetos insólitos; em suas mãos tudo virava arte, seus estandartes eram comoventes, mas nada foi mais grandioso que o Manto da Apresentação. Nesse manto, que bordou durante 30 anos, ele catalogou o mundo, bordando nomes de pessoas, artistas, cantores, países, acontecimentos, faixas de misses, retratando tudo que ele lembrava ou ouvia falar que existia; tudo que ele fazia era perturbador. Esse manto foi feito para ser usado no  momento em que o mundo se encontraria com o Todo Poderoso, e que seria seu grande encontro com Deus.

          Chamado de “o senhor do labirinto”, Bispo tinha seu universo particular, alucinado e delirante, mas sempre com algo de sagrado. Suas obras, que foram expostas na Bienal de Veneza, devem ser vistas com muita atenção, lembrando das circunstâncias e condições em que foram criadas. Há muitos anos vi uma exposição dele no Rio, numa pequena sala num 15º andar, se não me engano da Caixa Econômica, e que não fez nenhum sucesso. Ele ainda não era famoso, mas eu tinha minhas razões para ir vê-la, e vou contar.

          Num domingo de 1980 eu estava em casa, quando me telefonou um jovem repórter da TV Globo, dizendo, em tom urgente e excitado, que eu não podia deixar de ver o Fantastico naquela noite. Ele havia ido fazer uma matéria para expor as terríveis condições dos internos da Colônia Juliano Moreira, e como era muito curioso, como todo bom reporter, foi fuçando tudo, até que viu uma cela escura; entrou e encontrou um estranho homem, sozinho, cercado de panos bordados e objetos sem nenhum significado aparente. Ele entrou e conseguiu dialogar com o homem (que você já adivinhou ser Bispo do Rosário). Rolou uma simpatia, e Bispo não só mostrou tudo que vinha fazendo há 7 anos, sem sair da cela nem um só dia, como também contou de onde tirava o material, e como fazia suas obras, o que deu uma matéria inacreditável no Fantástico; foi depois desse programa que Bispo do Rosário surgiu para omundo.

          A partir daí a classe artística o descobriu, suas obras foram expostas em museus, galerias, e livros escritossobre sua pessoa. Livros que ele provavelmente não entenderia, se lesse.

          Um ser tão extraordinário como Bispo do Rosário seria descoberto mais dia menos dia, imagino. Ou não; e se algum servente do hospital resolvesse fazer uma faxina em sua cela antes da matéria aparecesse na TV, e jogasse tudo que encontrasse num lixão?

          Nunca vamos ter resposta para isso, e não me lembro de jamais ter ouvido alguém citar o nome desse reporter, o primeiro a vislumbrar a importância de Arthur Bispo do Rosário, mas eu sei quem ele foi.

          Seu nome era Samuel Wainer Filho, e ele era meu filho.


   

sábado, 1 de setembro de 2012

Certa Pobreza


Domingo, 2 de setembro de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


Outro dia tive que ir ao centro da cidade, onde não ia há anos. Conheci esse centro quando ainda era criança, e tinha chegado do Espirito Santo para viver no Rio. Na Zona Sul não havia lojas, ainda não existiam as butiques, e uma vez por semana ia com minha mãe ao centro. Era onde se fazia compras, desde as mais banais, até às mais importantes, que na época era um par de sapatos ou o tecido para fazer um vestido. Não existiam vestidos prontos, e cada família tinha sua costureira. Comprava-se o figurino (revista de moda), a costureira dizia quantos metrosprecisava, se fazia uma prova, e um dia chegava um embrulho de papel cor derosa, fechado com alfinetes _ o durex ainda não tinha sido inventado _ trazendo o vestido. 
          Era uma emoção ir ao centro, onde havia um comércio que me parecia o luxo dos luxos. Havia até lojas que vendiam casacos de pele, e imagino que fazia frio no Rio para usar peles – devia fazer -, pois as vitrines das lojas Canadá e Sibéria mostravam as mais lindas. Depois das compras, um lanche na Colombo, e a volta para casa de bonde. Era um diacompleto, de total felicidade. Foi lá que pela primeira vez tomei um sundae e comi uma coxinha de galinha; em Vitória não existiam essas coisas chiques.

          O mundo mudou, há anos não ia ao centro, mas tive que ir, semana passada. Passei pelas mesmas ruas e me deu uma tristeza tão grande que era melhor não ter ido. Fui parar no Largo da Carioca; é um largo, como diz a palavra, onde hoje as lojas são barraquinhas, e havia uma que, para animar, tocava um som bem alto. Das músicas, nem vou falar. Mas o que me impressionou mesmo foi a quantidade de pessoas que circulava por ali. Era muitas e todas, absolutamente todas, muito pobres.

          Em qualquer bairro do Rio existe gente pobre, mas não tantas assim, nem tão pobres. Era uma miséria absoluta, que se via nas roupas, nos sapatos _ a maioria com uma sandália havaiana já bem usada _, e nos rostos. Muitas lanchonetes pela rua, e numa delas o cartaz: “Arroz, feijão e batata frita por R$ 10,50”.

          Fiquei pensando nos pobres do Nordeste, que se vê na televisão e em alguns filmes brasileiros; eles moram em casebres com chão de terra batida, sempre muito bem varrido. E têm uma dignidade; não sei bem de onde ela vem, mas ela existe. Talvez por terem umpedacinho de chão só deles, talvez. A pobreza urbana é agressiva; são mulheres com uma criança no colo, duas pela mão, levadas pelas mães porque não têm com quem ficar, adolescentes de short e camiseta que deve ser a única roupa que têm. Ninguém pedia esmola, todos estavam ali fazendo alguma coisa, trabalhando, encarando um bico qualquer, talvez de ambulante, talvez de ajudante de camelô.

           E notei que apesar dessa miséria tão evidente, tão dramática – essas pessoas nào pertenciam, seguramente, à tão falada classe C -, quase todas as mulheres, e as crianças que iam junto, tinham as unhas dos pés pintadas de esmalte colorido.

           E me ocorreu que talvez seja esta a única fantasia a que têm direito.