domingo, 18 de março de 2012

O mais importante



Domingo, 18 de março de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


A informação é hoje um bem precioso, e milhares de pessoas se matam para obter uma, por pequena que seja, não importa sobre o que.

É preciso ser bem informado, e para isso é preciso uma especial competência: um homem bem informado é um homem poderoso, pois com boas informações se consegue qualquer coisa. Se for sobre o mercado de capitais, alguns podem ficar ricos ou, para usar uma expressão mais moderna, dar uma tacada que vai garantir toda sua descendencia.

Uma boa informação tem de vir de alguém que está “por dentro” da intimidade dos negócios, da amizade com políticos; pode também vir da amiga da mulher do governador ou da manicure da mulher do juiz, pois quem souber da novidade antes dela se tornar pública, vai poder ligar para 10 amigos importantes e contar, para que eles saibam que você já sabia. Para isso talvez seja preciso ser amigo também do segurança do Congresso, e com tantas e tão ecléticas amizades não vai ter tempo, jamais, para ir a um cinema ou namorar. E daí?

Pense um pouco: algum poderoso vai contar a você, que não é ninguém, se a taxa de juros vai subir ou descer? Pois é exatamente aí que entram eles, os que têm a capacidade de captar os sinais da mensagem, como se fosse um código. Para obter a informação é preciso dar algo em troca, seja lá o que for. É um negócio _ como quase tudo na vida.

Para um político tímido e solitário, pode ser companhia; para quem quer ascendersocialmente, conhecer as pessoas certas; para certos homens, ser apresentado às gatas. Não, nada de prostituição: bem pior. É, por exemplo, apresentar jovens aspirantes a modelo e, num clima de muito charme, levantar a bola do amigo,levar para jantar, dar muita risada. Isso hoje em dia é profissão.

Cada vez seentende menos o mundo. Houve um tempo em que trabalho era trabalho. Havia hora para começar, para terminar, e todo mundo sabia o que estava fazendo. O carpinteiro tinha seu martelo, seu serrote, seus pregos, quando o serviço estava pronto entregava e recebia seu dinheiro. Ou era sapateiro, ou costureira, ou médico, ou tinha uma loja. Era fácil de entender. Hoje, é nos jantares e nas grandes festas que são feitos os negócios.

Mas às vezes é preciso tirar férias de tanta modernidade e ir para um lugar onde a informação não chegue ou, se chegar, não faça quase nenhum sentido. Um lugar onde não haja carros, nem televisão, onde não existam cinemas, os jornais não cheguem nem existam celulares, nem internet.

Se quiser radicalizar, vá para uma casa no mato, sem conforto, eletricidade, ar condicionado; um lugar onde as informações cheguem por um vizinho que apareça de manhã, sente na varanda, tome um café _ talvez uma cachacinha _, olhe para o céu e diga que acha que vai chover; não soube pelo serviço de meteorologia, mas porque as galinhas acordaram alvoroçadas e o vento está abafado. Dizem que isso ainda existe.

Mas um dia pode dar vontade de voltar, e aí o problema vai ser se inserir de novo no mundo e ver o quanto é importante saber, em primeira mão, se a atriz da novela está ou não grávida.

Em primeira mão significa 30 minutos antes dos outros _ e talvez não mais do que 15 depoisdela.

O mundo anda mesmo muito estranho.

domingo, 11 de março de 2012

Os Arrependimentos



Domingo, 11 de março de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo
                              

Se pudesse voltar no tempo, você faria tudo igual? Eu não. Me arrependo de tantas coisas que fiz, tantas que deveria ter feito, que se pudesse reescrever minha vida, mudaria um monte de coisas: as que me fizeram sofrer, e também outras, em que fiz outras pessoas sofrerem.

         Se eu fosse de chorar, era a hora; mas o tempo passou, não há nada a fazer, então fico pensando em como seria minha vida, hoje, se tivesse feito tudo como deveria. Se tivesse tido uma vida equilibrada, se nunca tivesse pisado na bola _ em quantas eu pisei _, se nunca tivesse falado o que não devia, se não tivesse engolido  sapos, se tivesse tido a coragem de largar aquele homem logo que ele começou a me fazer sofrer, se tivesse tido mais paciência e ficado com aquele em que comecei a ver só os defeitos e que, pensando hoje, me fazia tão feliz.

         E continuo pensando, mas dessa vez, tudo ao contrário. Se hoje, passando minha vida a limpo, tivesse feito tudo como mandam alguns figurinos, estaria muito, mas muito arrependida. Olho para trás e me divirto com as loucuras que fiz, sendo que algumas me deixaram literalmente de cama, tão grande foram os vexames, tais as vergonhas que senti na manhã seguinte.

         O tempo que perdi ouvindo a mesma música _de Chico, claro_ esperando um telefonema que nunca veio, e sofrendo. Hoje, quando me lembro, dou risada, mas naquele momento pensei que minha vida estava acabada. E as confusões que aprontei, marcando dois encontros para a mesma noite, saindo de um bar à 1h da manhã porque tinha marcado com outro, e o primeiro percebeu, e coisas no gênero.

         Mas continuo pensando _ hoje é o dia. E se não tivesse feito nada disso; como estaria hoje, se minha vida tivesse sido certinha? Se tivesse casado com o terceiro namorado, tivéssemos tido um casal de filhos, ele fosse um bom marido, claro, e eu uma boa esposa, claro também. Que poderíamos estar casados até hoje, sem que eu nunca tivesse olhado _ desejado, nem pensar _ para um outro homem, e que a vida tivesse sido o que se chama uma vida boa. O que estaria pensando?

        Acho que estaria morta de arrependimento de não ter feito não uma, mas várias, todas (quase) as loucuras, de não ter chutado o pau da barraca muitas vezes mais, de não ter obedecido ao que mandam a família, a tradição e a propriedade.

        E no lugar de estar hoje dando risada, estaria chorando por todas as insanidades que deixei de fazer.  


         

domingo, 4 de março de 2012

As Famílias


Domingo, 4 de março de 2012, por Danuza Leão, para a Folha de S. Paulo


Hoje é domingo, e penso: e se não existissem os jornais? E se não existisse televisão, nem internet, nem cinema, nem telefone? E nem rádio?

       Fico imaginando como era a vida dos nossos avós, que não tinham nada disso. Então, faziam o que? Conversavam, talvez, mas os assuntos deviam ser poucos. Sobre o vizinho, que tinha saídomais cedo do que de costume, sobre a cozinheira, que não acertava o ponto do bolo, sobre o filho, que não tinha trazido o boletim para assinar.

       A vida era diferente; havia tempo para as famílias, um resfriado era um grande assunto, e como os interesses dos homens e das mulheres não eram iguais, os casais não se falavam nem nos aniversários, nem na casa, nem na cama. Mas as mentes trabalhavam, mesmo que ninguém compreendesse muito bem o que estava pensando _ até porque não se usava pensar.

       Minha família por parte de mãe era grande, e meu avô, italiano; no total, eram doze filhos vivos, 9 mulheres e três homens (7 haviam morrido). Outro dia, revendo Amarcord, lembrei de um tio, Hugo, que era igual a um dos personagens do filme de Fellini.

       Hugo nunca estudou nem trabalhou nem conversou com ninguém; passava os dias jogando sinuca no bar, acordava tarde, chegava depois que todos já haviam jantado, e o melhor pedaço de frango era sempre guardado para ele, que era servido pela mãe. Asirmãs morriam de medo dele, que se soubesse que alguma havia sido vista conversando com um rapaz, levava uma surra. Surra mesmo, e minha avó _ de quem nunca ouvi a voz _, já viúva, não dizia nada. Ele nunca namorou, nunca se casou e, puxando pela memória, não me parece que fosse gay. Aliás, em Cachoeiro do Itapemirim, onde moravam, só existia um gay na cidade, que se chamava Nacife. E também uma louca, a Rainha das Flores, sempre de chapéu, exageradamente pintada, com rouge cor de rosa nas faces e muito pó de arroz, que andava pela rua falando e cantando sozinha – puro Fellini.

       O que se passava na cabeça de Hugo? E na cabeça de minhas tias, que precisavam casar _ era a única saída _, que apanhavam mas não se revoltavam, e namoravam escondido?

       Uma delas era diferente; por acaso, a mais velha de todas. Ela nasceu em 1900, ficou noiva de um caixeiro viajante que um dia sumiu, e foi ser professora primária. Para lecionar _ que palavra antiga _ no Grupo Escolar, ia todos os dias, a cavalo, ensinar as crianças a ler. O tempo passou, minha avó morreu, ela foi morar com uma das irmãs, já casada e com filhos. Ajudava em tudo que fosse preciso, sem jamais reclamar de nada, sem um tostão de seu. Quando tinha 90 anos conseguiu realizar seu sonho: foi aposentada, e passou a receber uma pensão que não era nada, mas para quem nunca teve um centavo, era muito. Ela se sentiu, de repente, rica.

       Mas por que estou falando dessas coisas? Acho que porque acordei, lembrei desse tempo, sei lá por que, e me veio uma angústia só de pensar que podia não encontrar o jornal na porta; pensei também em Cachoeiro, e no que seria de minha vida se meu pai não tivesse decidido sair de Vitória para tentar a vida na cidade grande, o Rio de Janeiro, capital da República.

       E o que teria sido de mim, se não tivesse tido um pai como o meu.